A desigualdade de oportunidades e de representatividade de homens e mulheres em espaços de poder é um tema discutido há muitos anos com diferentes enfoques. Diversas pesquisas comprovam e exemplificam porque desigualdade de gênero é uma realidade latente. Este ano as reflexões sobre os impactos da economia dos cuidados têm ganhado força, como é o caso do relatório da Oxfam, Trabalho de Cuidado e Desigualdade, que mostra em números como as horas de trabalho de cuidados majoritariamente realizados por mulheres, muitas vezes sem remuneração, são base para a manutenção de estruturas de desigualdade.
Além dos números, é comum analisar a cronologia da luta da mulher na sociedade, organizando os fatos e conquistas dos movimentos a favor da equidade de gênero. É interessante observar essa perspectiva e pode até parecer que as coisas foram acontecendo em uma sequência linear. Mas o fato é que, essa sequência linear e objetiva é usada há décadas para tratar do mesmo tema e mesmo assim as mudanças e transformações visíveis acontecem em passos muito lentos.
A proposta aqui é, equilibrar a forma de argumentação, majoritariamente objetiva e pragmática e torná-la um pouco mais humana e subjetiva.
Falar sobre desigualdades de gênero é, para mim, falar sobre ser mulher de um ponto de vista muito específico. É como a famosa frase da Simone de Beauvoir, no livro “O segundo sexo”: Ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Analisar desigualdades de gênero não é analisar uma condição biológica, mas uma construção social e cultural que dá a homens e mulheres condições e perspectivas muito diferentes sobre como poderão viver suas vidas.
Embora me considere feminista desde minha adolescência, foram duas situações específicas na minha vida que colocaram as questões de gênero com uma outra perspectiva para mim: a maternidade e o mestrado em psicologia social.
A maternidade e a perspectiva dos cuidados
Lembro da última semana de trabalho antes do meu primeiro filho nascer. O diretor da organização na qual eu trabalhava perguntou às pessoas que ali estavam, em tom de brincadeira, quem achava que iria trabalhar mais no semestre seguinte. Eu, ingenuamente, respondi que trabalharia menos (pois poderia usufruir do privilégio de ter seis meses de licença remunerada em casa). E ele me respondeu algo que me faria mudar minha perspectiva do que é trabalho: “você vai trabalhar mais que todos por aqui”.
De fato, foi o que aconteceu. O trabalho do cuidado de uma criança era algo invisível para mim até então. Mesmo com amigas mães, mesmo me considerando empática a elas, eu não tinha a consciência do trabalho que envolve criar outro ser humano. E também não tinha consciência do impacto psicológico que é exercer esse trabalho diariamente, e ele ser invisível para a maior parte da população.
A perspectiva dos cuidados ficou muito forte porque me dei conta que usava (e ainda uso) a maior parte do meu tempo para acompanhar o crescimento e suprir as necessidades do meu filho. Hoje com duas crianças em casa, percebo o quanto é essencial e o quanto sou privilegiada por poder estar perto das crianças nesse processo. Porém, ao mesmo tempo, tenho outras necessidades e vontades como mulher, como pessoa, e é impressionante como é naturalmente instituído que as mulheres são quem deve cuidar das crianças. Fui eu, como mulher e mãe, quem “naturalmente” decidiu abrir mão da carreira por um tempo para poder me dedicar à maternidade. Essa foi a melhor decisão que eu tomei nos últimos anos. Fico pensando em como os homens perdem por não terem (ou não se darem, mas isso é assunto para outro artigo) essa oportunidade de se relacionar intensamente com seus filhos, quando suas condições de vida assim permitiriam.
Nesses últimos anos a questão dos cuidados se mostrou para mim como a principal causa e também como o principal entrave para que a equidade de gênero realmente aconteça. É por conta da atribuição dessas atividades à mulher e da sua desvalorização e invisibilização que é tão difícil modificar a estrutura em que vivemos.
A licença-maternidade ao invés de licença-família, as brincadeiras de “menino” e de “menina”, os baixos salários para as profissões de cuidados domésticos e relacionados aos cuidados. Tudo isso faz parte de uma estrutura, que por muito tempo foi invisível e “inconsciente”, que continua existindo e que perpetua as desigualdades entre homens e mulheres ao longo dos anos.
Aqui a minha principal reflexão é: Como eu pude ser tão míope e não ver essa dimensão antes de me tornar mãe e viver isso na pele? Talvez não fosse possível.
Hoje, a partir dessa reflexão, tenho plena consciência que não entendo e talvez nunca vá entender o tipo de preconceito que passa uma mulher negra, pobre, trans, lésbica, ou tantas outras identidades. Por essa razão que precisamos ter a humildade de saber se colocar em nosso próprio local de fala, e dar espaço para que cada uma possa falar e se posicionar, pelas suas lutas e reivindicações. E eu, cada vez mais, me encontro me assumindo no meu lugar de não saber.
Privilégios, raça e classe social
A segunda história que quero contar é sobre minha experiência de pesquisa no mestrado em Psicologia Social na Universidade de São Paulo. Eu achei que iria aprender muito por estar em uma universidade renomada na área, mas aprendi mesmo foi na chamada “pesquisa de campo”. Essa etapa, de entrevistas e observação-participante, da minha pesquisa aconteceu quando meu filho mais velho completou sete meses. Meu objetivo inicial era compreender as relações entre lideranças comunitárias e participantes de empreendimentos de economia solidária. Mas “aconteceu” de todas as participantes das entrevistas serem mulheres e a pesquisa acabou sendo totalmente permeada por reflexões sobre as desigualdades de gênero.
A violência contra a mulher se mostrou totalmente arraigada aos cotidianos daquelas mulheres. Sendo vítimas ou não, o tema apareceu em todas as conversas. Foram muitos relatos de mulheres sofreram violência física e psicológica durante anos dos companheiros. Relatos de mulheres que só conseguiram sair dos relacionamentos quando tiveram acesso a uma rede de apoio.
Também ficou muito forte as dificuldades sofridas pela distância “centro e periferia” que rouba tempo de vida de quem vive nas periferias. Relatos de mulheres que trabalharam anos como empregadas domésticas e que, além das 8 horas de trabalho diários, levavam outras 6 no transporte público para chegar em casa e ainda precisavam de tempo para cuidar da casa, dos filhos e delas mesmas.
Depois de alguns meses de convívio, a história e a vida delas fazia parte dos meus pensamentos diários. Saber que, de acordo com o Mapa da Desigualdade de São Paulo, a expectativa de vida de alguém do Jardim Ângela é 20 anos menor que a expectativa de vida de alguém que vive em Alto de Pinheiros choca e muito. Mas conviver com as mulheres que participaram da pesquisa me permitiu ter outra dimensão, mais humana e próxima, do que é ser mulher negra e periférica em São Paulo. Com elas aprendi na prática o que é sororidade. Elas me mostraram que é quando você está “entre as suas”, é possível romper barreiras e provocar transformações. As muitas transformações que elas vêm, ao longo da vida, provocando em suas comunidades e vidas pessoais.
Nessa experiência ficou mais claro para mim que eu, embora não possa falar por elas, posso trabalhar por elas e contribuir para que elas possam falar em mais espaços. Não só porque me incomoda ver o preconceito e as situações desiguais que existem, mas porque não existe igualdade de direitos para as mulheres se todas não puderem usufruir deles.
Sou mulher, sofro com o machismo. Mas sou branca, tenho uma condição econômica estável, moro em um bairro “central”. O meu sofrimento como mulher é muito diferente do sofrimento de outras.
No entanto isso não me impede de ter consciência que a igualdade de gênero só vai acontecer se existir também a igualdade social, cultural, ambiental. E isso exige mudar as estruturas da sociedade em que vivemos.
Algumas reflexões
Agora, em plena pandemia, tenho refletido sobre como lidar com esse processo de mudança social tão necessária. Essas duas histórias me permitem constatar que mesmo exercendo empatia e tentando ser uma pessoa consciente, eu de fato não tinha consciência sobre tudo o que gira em torno da economia dos cuidados. Isso me obriga a ter humildade e assumir que, por mais que esteja em um processo de constante desconstrução para a transformação, cometo erros.
Então, mais do que encontrar afirmações e verdades, acredito que o processo de mudança deva ser pautado em colaboração e compartilhamento genuíno de aprendizagem.
É preciso incluir a perspectiva de gênero, raça e classe social em todas as reflexões. Perceber é com certeza o primeiro passo, mas o segundo passo precisa ser dado. E a partir dele, virão novas reflexões. A mudança precisa sim ser radical, porque o problema está na raiz. Mas também pode acontecer com acolhimento e delicadeza.
Percebo que as perguntas geram mais movimento que as respostas. Então finalizo com um exercício que aprendi a fazer por onde passo, para me ajudar a definir minhas próximas ações e os diálogos que vou abrir nesta estrada desconhecida que é a vida.
Quais as características das pessoas que estão aqui? São mais homens ou mulheres? Mais brancas ou negras? Que posições cada uma dessas pessoas ocupa? As pessoas estão confortáveis com os lugares que ocupam? O que poderia ser feito para que essa configuração seja diferente daqui alguns meses? O que eu posso fazer a respeito? O que eu fiz essa semana ajuda a mudar ou a perpetuar a realidade em que vivo?